Morre Niède Guidon, símbolo da arqueologia brasileira e guardiã da Serra da Capivara

A arqueóloga Niède Guidon, uma das mais respeitadas cientistas brasileiras, faleceu nesta quarta-feira (4), aos 92 anos, na cidade de São Raimundo Nonato (PI), onde dedicou quase toda sua vida ao estudo da pré-história e à proteção de um dos maiores patrimônios arqueológicos do mundo: o Parque Nacional da Serra da Capivara.

O destino, ou talvez uma simbólica coincidência, quis que sua morte ocorresse justamente na semana em que o parque — que ela mesma ajudou a criar — completa 46 anos de existência.

Nascida em Jaú, interior de São Paulo, em 12 de março de 1933, Niède teve uma carreira marcada pela ousadia científica e pelo compromisso social. Formou-se em História Natural pela USP e especializou-se em arqueologia na Sorbonne, na França, onde também se doutorou. Foi durante seu trabalho no Museu Paulista que conheceu, por fotografias, as primeiras imagens das pinturas rupestres do Piauí. A partir dali, sua vida se voltaria para o sertão nordestino.

Em 1973, retornou ao Brasil e iniciou, com apoio do governo francês, a missão arqueológica franco-brasileira que escavaria, revelaria e protegeria as centenas de sítios pré-históricos da região. O resultado mais marcante desse trabalho foi a criação do Parque Nacional da Serra da Capivara, em 5 de junho de 1979 — um dos maiores feitos de conservação científica e cultural do Brasil. Em 1991, o parque foi reconhecido como Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO.

Ao longo de mais de cinco décadas de escavações, Guidon liderou a descoberta de mais de 600 sítios arqueológicos com arte rupestre e vestígios humanos que reescrevem a história do povoamento das Américas. Sua pesquisa mais polêmica e revolucionária surgiu nos anos 1980, quando publicou, na revista Nature, evidências de que o ser humano já habitava a América do Sul há mais de 30 mil anos, desafiando a chamada teoria Clóvis, até então considerada a mais aceita.

Mas Niède não foi apenas cientista: foi também educadora, ativista e desenvolvimentista. Criou a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), capacitou moradores locais como guias, arqueólogas e educadoras, incentivou o artesanato, construiu escolas e postos de saúde, e lutou incansavelmente para manter vivo o parque, mesmo com escassez de recursos e desinteresse político.

Seu trabalho transformou São Raimundo Nonato e as comunidades ao redor da Serra da Capivara, levando educação, identidade e dignidade ao semiárido piauiense. Exemplo disso é a minha própria família: minha mãe e meu pai trabalharam com ela durante anos. Além deles, tios, tias, amigos e tantas outras pessoas da região conseguiram melhorar de vida graças às oportunidades e ao impacto social gerado por seu trabalho.

Niède recebeu reconhecimento internacional — como a Legião de Honra da França, a Ordem do Mérito Científico no Brasil, o Prêmio Príncipe Claus e a Medalha da UNESCO — e chegou a ser indicada ao Prêmio Nobel da Paz em 2005, em conjunto com outras mulheres de destaque mundial.

Niède Guidon deixa um legado que vai além da ciência. Ela devolveu ao Brasil parte de sua ancestralidade, elevou o nome do Piauí ao cenário internacional e provou que o sertão também é berço da humanidade. Sua partida, às vésperas do aniversário do parque que ela mesma chamou de “filho”, fecha um ciclo e inicia outro: o de manter viva sua obra.

Na paisagem silenciosa da Caatinga, entre pinturas rupestres milenares e formações rochosas que testemunharam os primeiros passos do homem nas Américas, a memória de Niède Guidon continuará ecoando — como guardiã da história, como mãe da Serra da Capivara e como símbolo de resistência e saber.

Por Lindomar Negreiros

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